200 años de Nuestra América

07/12/2010. Por Raquel Moisés

Não é assim no Brasil, onde as escolas e as universidades passaram praticamente ao largo das discussões sobre as lutas independentistas que desembocaram na criação dos estados de “Nossa América”, como Martí se referia à América Latina. Raros foram os debates e, mais uma vez, a história de América deixou de ser ensinada minuciosamente, como recomendava o pensador cubano. Na UFSC, o Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/CSE/UFSC) contribuiu para quebrar o silêncio acadêmico e realizou o Seminário 200 anos de Independências na América Latina. O evento contou com o apoio do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Centro Sócio-Econômico, Programa de Pós-graduação em História, Núcleo de Estudos de História da América Latina (NEHAL) e Editora Insular, que deve lançar, no início de 2011, o livro “História da Nação Latino-americana”, de Jorge Abelardo Ramos.

Comemorar o quê?

A primeira conferência durante o seminário foi de Horacio Crespo, da Universidad Autónoma del Estado de Morelos, México. O professor, também do Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional de San Martín (CEL-UNSAM), Argentina, falou sobre “A independência hispano-americana no ciclo das revoluções modernas”. Outro conferencista, Andrés Kozel, professor da pós-graduação e da graduação em Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM, que também atua no CEL – UNSAM, expôs o tema “Considerações sobre a tese da independência como balcanização”.

O seminário concluiu com uma mesa redonda com a participação de Crespo, Kozel e Waldir Rampinelli, presidente do IELA. As discussões retomaram aspectos das polêmicas que envolvem a passagem dessa data e dos significados das lutas independentistas que, há dois séculos, com surpreendente simultaneidade, espraiaram-se do México, no vice-reino da Nova Espanha, a Buenos Aires, no vice-reino do Rio da Prata.

Durante os debates, onferencistas e participantes dialogaram sobre uma das perguntas mais presentes nas palestras e comentários: Há o que comemorar nesses 200 anos de independência das colônias? Várias intervenções foram no sentido de que há o que celebrar, principalmente o fortalecimento das lutas dos povos originários que se levantamem batalhas pela autonomia, o direito à terra, à educação, à saúde, às próprias línguas e cultura ancestrais.

Tais observações faziam referência aos povos da América Profunda, que fincam raízes em civilizações milenares e configuram nações reais de Nuestra América, a despeito da dizimação, da discriminação e da violência a que foram (e são) submetidos. Já as críticas principais ficaram centradas na constatação de que as mudanças, nesses dois séculos, são ainda insuficientes, confirmando a atualidade das advertências dos pensadores José Martí e José Carlos Mariátegui, de que a colônia continuou a viver na república e de que os privilégios da república seguiram sendo os mesmos da colônia.

Expressivas lutas populares

Waldir Rampinelli lembrou que, enquanto em toda América hispânica muitos eventos marcaram os 200 anos das independências das colônias, o Brasil observou a distância a passagem dessa data. Ao contrário, por exemplo, da vizinha Argentina, onde, até nas livrarias, ganharam lugar de destaque os livros que abordam a temática sob variados enfoques teóricos e em distintos campos disciplinares.

Ao indagar sobre a pertinência de festejar as lutas independentistas, o historiador lembrou que colônia continuou a viver na República, como advertira Martí, mas também é evidente que, na América de hoje, assomam nacionalismos revolucionários e expressivas lutas populares. Portanto, enfatizou, enquanto o foco oficial de alguns governos é o de festejar acriticamente, os povos da América Profunda sabem que é preciso preparar a resistência e seguir em luta.

O presidente do IELA também destacou a importância que teve, para as lutas independentista, a primeira “república de escravos” do mundo, o Haiti. No entanto, a nação haitiana completou 200 anos de independência em 2004, sem ter a memória de suas lutas motivado quaisquer celebrações. Pouco se menciona a importância que teve a nação haitiana para as lutas independentistas, pois a experiência bem-sucedida de uma revolução de escravos teve profunda influência na América Latina, inclusive no Brasil. Naquele período histórico, o fenômeno do haitianismo amedrontava as elites, as quais temiam que o exemplo fosse seguido. Quando exilado, o próprio libertador Simón Bolívar foi acolhido no Haiti, tendo recebido, do então presidente Alexandre Pétion, conselhos, proteção, ajuda financeira, armas e até mesmo uma prensa tipográfica.

Dever da crítica Horacio Crespo destacou, em sua conferência, que a universidade tem a obrigação de fazer reflexões críticas, fugindo de visões superficiais e de interpretações conservadoras sobre os acontecimentos. Na sua análise, o professor da Universidad Autónoma de Morelos segue a linha de pensamento de autores que circunscrevem a independência hispano-americana no ciclo das revoluções modernas, distanciando-se de teses que veem o processo independentista na América como uma grande herança das idéias liberais e como expressão, portanto, do triunfo do liberalismo.

Crespo faz esse debate a partir de uma visão de inspiração marxista crítica, que atribui como acontecimento central para as independências a construção de novos estados que emergiram no ciclo das revoluções modernas. A partir dessa perspectiva, as lutas independentistas são vistas dentro do processo de rebelião contra o estado colonial e se circunscrevem no conjunto dos processos gigantescos de reação contra o despotismo centralizador e modernizador do absolutismo borbônico.

O professor esclarece que há cenários diferenciados que precisam ser discutidos quando se analisa as independências na América hispânica. Crespo lembra que se tratou de um processo muito desigual, de norte a sul, e que se expressou de modos distintos nas lutas anti-coloniais, na revolução triunfante dos escravos haitianos, nas rebeliões indígenas. Um elemento importante a ser considerado foi o modo como se manifestou o movimento dos camponeses indígenas, que surpreendeu as classes crioulas, envolvidas nas lutas independentistas, mas ainda muito comprometidas com os antigos regimes coloniais.

Crespo destacou ainda o papel fundamental das forças dos “terratenientes”, os proprietários de terras, os latifundiários. Na linha de interpretação que segue o professor, o processo das independências na América não teria sido hegemonizado pelas classes crioulas, mas pelas classes conservadoras de proprietários de terras, que inclusive controlaram o poder nas novas repúblicas que emergiram das lutas. Para o professor, a ordem conservadora que persiste nas repúblicas latino-americanas se deve ao modo como se desenhou a coalizão para o processo de independências, subordinado em grande medida ao poder dos proprietários de terras. E, como analisa Crespo, essa condição não foi passageira, pois a ordem que se consolidou e perdura no cenário latino-americano é ainda dominada por esses setores mais conservadores.

O professor também trouxe para o debate a tese de que teria fracassado, na América, a construção de estados verdadeiramente modernos. Nas diferentes interpretações historiográficas, há os que dizem, como Crespo, que a América Latina é fruto de uma modernidade incompleta, postergada. Uma modernidade que, porém, já revelou-se um malogro na parte do mundo em que teria se completado.
Diante desse cenário de fracasso, Horacio Crespo é dos que pensam que o caminho talvez esteja em buscar outro acesso à modernidade, que não essa vigente, baseada em uma ordem não sustentável e, portanto, já condenada. E para isso, diz o historiador, é também útil debruçar-se sobre a história e olhar o passado. Ele adverte sobre a necessidade de não se ficar aprisionados à memória de um panteão de heróis, mas de se pensar criticamente e propor outros cenários em que a vida possa se desenrolar de outro modo que não este modelo que se revela esgotado. A procura por essa outra modernidade, para ele, impõe novas tarefas e a capacidade de pensar práticas inovadoras que tragam formulações importantes para fazer assomar um tempo novo.

Na busca dessa outra realidade, para ele hoje “irrealizável”, Crespo pensa que é necessário evitar o cenário catastrófico do “todos contra todos`”. A razão de seu pessimismo está no fato de não ver no horizonte atores novos, com força para transpor as dificuldades e fazer as mudanças necessárias. Além do mais porque, assinala o pensador, a história não é uma elocubração, é uma realidade.

Esperança de um final feliz

Ou Professor Andrés Kozel iniciou sua conferência destacando que as discussões sobre o tema das independências não devem se limitar ao atual contexto de celebrações dos 200 anos. Ao apresentar sua contribuição para a análise da tese das independências como processo de balcanização, a partir da obra do historiador argentino Jorge Abelardo Ramos, Kozel lembrou que as interpretações historiográficas são plenas de pontos de controvérsia e zonas de penumbra, e assinalou que, na perspectiva da unidade latino- americana, a noção de balcanização, discutida na obra de Ramos, é definida como a história de um fracasso.

Tal tese, como explica Kozel, remete a várias perguntas, entre elas a que indaga se de fato existiria uma nação latino-americana e se, nela, seria possível incluir o Brasil. Na interpretação de Ramos, a história do único país de língua portuguesa da América é apresentada como exemplo de uma “não balcanização” ou de uma “balcanização evitada”.

Kozel, que é profesor em Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM, expõe algumas pistas que orientam suas pesquisas sobre a apropriação latino-americana da idéia de balcanização. A noção, como explica, apareceu nas primeiras décadas do século XX, como referência aos processos acontecidos na península balcânica no contexto da decadência e dissolução do império otomano, imagem que depois foi usada para se referir a outros processos histórico-sociais.

Ao falar sobre essa ideia como sinônimo de fragmentação, ele também cita o intelectual argentino Manuel Ugarte, que, sem usar a palabra, clamava para a necessidade de os países da “pátria grande” unirem-se para enfrentar o “perigo ianque”. A ideia ainda aparece, mesmo sem o uso da palavra específica, em uma extensa literatura histórica em que, de modo geral, a tese da balcanização assume uma conotação predominantemente melancólico-nostálgica, assinalando os prejuízos da perda da sonhada unidade.

Todavia, assinala Kozel, a ideia de balcanização no contexto latino-americano emerge de modo especialmete vigoroso na obra do intelectual argentino Jorge Abelardo Ramos (1921-1994), autor de “História da nação latino-americana”, um dos livros mais influentes da geração do historiador. De acordo com Kozel, o intelectual que, em geral, escreveu suas obras historiográficas sem se ater a um trabalho sistemático sobre fontes e documentos primários, apresenta uma proposta interpretativa inovadora da história, fundada na apropriação do legado marxista-leninista-trotskista e na sua veemente crítica à obra historiográfica de Bartolomé Mitre. Segundo supõe o conferencista, Ramos chegou à formulação de sua versão sobre a tese da balcanização latino-americana exatamente a partir do enfoque anti-mitrista que utiliza para dar conta de explicar o processo rioplatense.

Kozel observa que no livro “História da Nação Latino-americana” Ramos faz uma advertência fulminante ao afirmar que ofereceria ao leitor, na verdade, não uma História da América Latina, mas apenas uma crônica das lutas que o povo fez para reunir-se em uma nação. Trata-se, portanto, diz o conferencista, da história de um fracasso, pois a América Latina naquele momento da publicação do livro, ( e ainda hoje), não conseguiu unificar-se como nação. A história de Ramos, porém, não traz uma visão totalmente pessimista, já que o seu relato aponta, no final, um caminho de esperança que recupera a promessa bolivariana a partir do horizonte estratégico de uma praxis transformadora.

Kozel esclarece que, para Ramos, o drama latino-americano está no fato de a revolução de independência não ter se traduzido em unidade nacional do continente. “A distinção que o historiador faz entre estado e nação está baseada na constatação de que a América Latina se apresenta como duas dezenas de estados balcanizados, edificados sobre uma ideia truncada de nação, já que esta permaneceu apenas em estado potencial.”

O historiador argentino afirma que o fracasso do projeto unificador pode ser explicado pela desproporção entre a superestrutura ideológico-jurídica pensada por Simón Bolívar e a infraestrutura econômico-social escravista e semi-servil, controlada por latifundiários, donos de escravos e exportadores de matérias-primas, isolados entre si e vinculados em separado com o mercado mundial. Localistas e ligados aos interesses das potências, especialmente a Inglaterra, esses setores buscavam estabelecer tarifas e regimes políticos para manter seus privilégios, contribuindo assim decisivamente para o processo de fragmentação da unidade.

Ramos analisa, em sua obra, os motivos que para ele explicam a existência dessas nações inacabadas, que não são feudais porque produzem para o mercado mundial, mas também não são capitalistas, porque sua economia se baseia em um regime servil e escravagista. Além disso, na interpretação do historiador, as classes dominantes à época da independência não são feudais, pois fazem parte de um capitalismo mercantil funcional à acumulação dos centros verdadeiramente capitalistas, mas também não são capitalistas, pois conservam a psicologia feudal. A posição de Ramos, portanto, é bastante clara quando ele afirma que o capitalismo nacional ainda não triunfou plenamente nessa parte do mundo. É por isso, explica Kozel, que o intelectual e político argentino apoiou, a seu tempo, movimentos nacional-populares de orientação industrializadora.

Kozel também observa que o movimento de independência, para Ramos, assumira um caráter de luta de classes logo no início, já que as classes crioulas se sentiam sufucadas pelo regime espanhol, enquanto as “castas infames” incubavam dois tipos de ódio: contra os crioulos ricos e também contra os espanhóis que os tiranizavam. Nesse viés interpretativo, Ramos assinala que a invasão napoleônica apenas opera como catalizador, já que, no início, os crioulos seguiram com grande interesse a luta na Espanha, pois disso também dependeria a unidade ou a separação das colônias. Aos poucos, contudo, os americanos se convenceriam de que mesmo com o triunfo do liberalismo espanhol não se daria à América igualdade plena, a partir da idéia de uma nação comum hispano-americana.

Um dos pontos principais da abordagem de Ramos, lembra Kozel, é de que a revolução nacional não poderia acontecer sem atacar profundamente a desigual estrutura social latino-americana. Na sua interpretação, as reivindicações só poderiam se viabilizar se fossem carregadas de conteúdo social, e daí sua explicação para as primeiras derrotas de Bolívar na fase inicial das lutas, já que ele se manteve, no principio, indiferente às “castas infames”. O êxito só foi possível depois que Bolívar, ouvindo os conselhos do presidente do Haiti, Petión, agregou às forças independentistas uma sólida base social, formada por numerosos escravos e os “llaneros” (camponeses indígenas).

Kozel apresentou ainda aspectos relacionados à forma como Ramos interpreta o casos específico do Brasil, que seria, para ele, um exemplo de “balcanização evitada”, em grande parte por causa da submissão e servilismo da corte imperial portuguesa, que vivia à sombra do império britânico. Assim, segundo Ramos, o próprio Brasil se torna uma ponta de lança britânica contra o resto da nação latino-americana, a qual também era empurrada pelo mesmo amo imperial contra o Brasil. É a partir dessa ótica que o historiador explica porque os latino-americanos foram excluídos da intensa vida história brasileira, desconhecendo seus heróis, conflitos, seus pensadores e suas revoluções, que permaneceram enclausurados atrás de suas imensas fronteiras.

Ao concluir sua conferência, Kozel assinala que há, todavia, na obra de Ramos, uma face iluminada pela esperança e um forte impulso que gravita na direção de um final feliz. Embora apresente o processo independentista como o espetáculo tragicômico de uma nação despedaçada, que se balcaniza e se organiza em estados nacionais, o historiador argentino preconiza a possibilidade de reconstrução e reunificação da história a partir de um ângulo novo de um passado comum.

E é na própria tese da balcanização que se aninha tal esperança. Porque, como avalia Kozel, dizer que o que devia se produzir – a unidade latino-americana – não aconteceu porque necessitava de bases efetivas, não é muito diferente de dizer que não aconteceu porque não havia condições para que acontecesse naquele momento. Assim, porque que então julgar como fracasso o que, por limites estruturais, não poderia mesmo acontecer?

Ramos aparece, na sua obra, portanto, como um nostálgico do sonho de Bolívar e dos projetos confederativos que não se realizaram porque eram ideias acertadas, mas quiméricos, uma vez que eram inviáveis para as condições dadas naquele momento histórico. O horizonte apontado por Ramos também traz uma contradição para os leitores dos dias de hoje, uma vez que a sua utopia latino-americanista acaba indo na direção do desenvolvimento modernizador, conduzido por um poder forte e centralizado, capaz de dar conta das tarefas que a frágil ou inexistente burguesia seria incapaz de realizar. Assim, a perspectiva da análise de Ramos, como lembra Kozel, certamente provoca grandes e importantes discussões para quem quer seguir na construção do latino-americanismo como autêntica tradição viva e não como mera retórica.

http://www.iela.ufsc.br/noticia/200-anos-de-nuestra-america

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